Gosto de pensar na igreja cristã como “a grande casa de ferramentas de Deus”, na qual Ele repartiu a cada um de nós crentes as ferramentas apropriadas para que juntos possamos construir a Sua obra neste mundo – “Tendo em vista o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo.” (Ef. 4,12).
É claro que você já percebeu que estou usando o termo ferramentas como sinônimo de dons espirituais. Neste ponto, quero definir alguns termos e fazer alguns esclarecimentos.
- Dons Espirituais – O 2.º Testamento usa a apalavra grega carisma para designar os diversos dons que Deus deu a seus filhos através do Espírito Santo – “Mas procurai com zelo os maiores dons. Ademais, eu vos mostrarei um caminho sobremodo excelente.” (1Cor 12,31). Na linguagem comum, a personalidade atraente, mas biblicamente significa dom de graça. Por isso, carisma na Bíblia teu um sentido diferente daquilo que o mundo imagina quando diz que alguém tem carisma.
- Talentos naturais – Como o próprio nome indica, talentos naturais são habilidades com as quais a pessoa já nasce ou que desenvolve a partir do seu potencial. O que não significa, é claro, que também não venham de Deus – “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação.” (Tg 1,17).
- Dons X talentos – Embora não seja possível fazer uma distinção precisa entre estes dois termos, apresento abaixo um quadro didático comparativo, baseado nos escritos de David Kornfield, que ajudará a compreender melhor.
TALENTOS NATURAIS
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DONS ESPÍRITUAIS
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- Vêm de Deus, após o nascimento;
- Tocam na emoção das pessoas;
- Desenvolvem-se especialmente com muita disciplina.
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- Vêm de Deus, após o novo nascimento;
- Ministram ao espírito das pessoas;
- Desenvolvem-se especialmente pelo andar do Espírito.
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Talentos naturais ou habilidades profissionais, consagrados a Deus, podem funcionar de forma parecida com os dons espirituais ou acompanhar os dons a eles relacionados, visto que ambos provém de Deus – “Mas todas as coisas provêm de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Cristo, e nos confiou o ministério da reconciliação.” (2Cor 5,18). O importante é usar tudo que temos para edificar outros e glorificar a Deus – “E tudo quanto fizerdes por palavras ou por obras, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai.” (Cl 3,17); “Se alguém fala, fale como entregando oráculos de Deus; se alguém ministra, ministre segundo a força que Deus concede; para que em tudo Deus seja glorificado por meio de Jesus Cristo, ma quem pertencem a glória e o domínio para todo o sempre. Amém.” (1Pd 4,11).
Vejamos agora através dos textos bíblicos (Rm 12,3-10; 1Cor 12,1-14.40; Ef 4,7-16 e 1Pd 4,7-11), os princípios fundamentais que orientam a doutrina bíblica dos dons espirituais, que estão presentes em todas as referencias bíblicas já citadas.
I. A INTERDEPENDÊNCIA DOS MEMBROS DA IGREJA.
Em Rm 12,4-5 – “Pois assim como em um corpo temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma função, assim nós, embora muitos, somos um só corpo em Cristo, e individualmente uns dos outros.” – Paulo esboça uma analogia entre o corpo humano e a comunidade cristã. Assim como cada um de nós tem um corpo com muitos membros e estes membros não exercem todas a mesma função, “embora as diferentes funções sejam necessárias” para a saúde e enriquecimento de todo, “assim também em Cristo”, pela a nossa união comum com Ele, nós que somos muitos formamos um corpo. Como um só corpo, “cada membro faz parte de todos os outros” (John Stott). Isto é, nós dependemos uns dos outros, e essa mutualidade da fraternidade cristã é enriquecida pela diversidade dos nossos dons.
Em 1Cor 12,12 – “Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo.” – percebemos o apóstolo Paulo utilizando a mesma figura (do corpo humano) usada na carta aos romanos para mostrar que todas essas funções (dons) visam fazer com que o corpo funcione harmoniosamente, e cada uma delas contribua para o bem-estar do corpo como um todo.
Em Ef 4,16 – “do qual o corpo inteiro bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, efetua o seu crescimento para edificação de si mesmo em amor.” – ainda usando a composição e funcionamento do corpo humano párea falar do Corpo de Cristo, o apóstolo Paulo mostra claramente a variedade que Deus quer que exista na Igreja, bem como a diversidade de seus mistérios, fazendo-as crescer de forma coesa pelo alcance evangelistico e pelo amadurecimento de seus membros.
Em 1Pd 4,10 – “servindo uns aos outros conforme o dom que cada um recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus.” – o apóstolo Pedro utiliza a figura da casa, com o seu despenseiro (indivíduo encarregado do aprovisionamento e controlo da despensa), para exortar-nos a servir uns aos outros de conformidade com a graça (fonte de dons) recebida. Porque de acordo com o texto considerado, todos na “casa de Deus” têm graça para dar, bem como precisam receber graça. E todos nós somos chamados a suprir essa necessidade mutuamente.
Neste ponto, vimos que os dons espirituais devem ser exercitados levando-se em conta a interdependência dos membros da igreja. Por isso, no contexto de sua igreja local em particular e no Corpo de Cristo como um todo, não se isole, mas coopere a aceite a cooperação como Deus ordena – “para que não haja divisão no corpo, mas que os membros tenham igual cuidado uns dos outros. De maneira que, se um membro padece, todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele.” (1Cor 12,25-26).
II. O EXERCÍCIO DO AMOR FRATERNAL.
- Característica do amor fraternal.
Em Rm 12,9-10 – “O amor seja não fingido. Aborrecei o mal e apegai-vos ao bem. Amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal, preferindo-vos em honra uns aos outros.” – creio que propositadamente, depois de descrever nos dons espirituais, e no mesmo contexto, Paulo enfatiza o amor cristão, que segundo ele deve ser:
a) mútuo – evidenciado duas vezes no versículo 10, através da expressão “uns aos outros”.
b) Fraternal – um amor como aquele experimentado pelos irmãos naturais, que embora tenham pequenos desentendimentos, voltam a reconciliar-se – Sl 133.
c) Sincero – literalmente, amor sem hipocrisia, que faz com que as relações na Igreja não sejam um teatro, mas verdadeiras – “Mas o fim desta admoestação é o amor que procede de um coração puro, de uma boa consciência, e de uma fé não fingida.” (1Tm 1,5).
- Amor fraternal e amor divino.
Em 1Cor 14,1 – “Segui o amor; e procurai com zelo os dons espirituais, mas principalmente o de profetizar.” – e 1Cor 13,1-10, outra vez Paulo, ao discorrer sobre os dons, mescla-os com o amor que vem de Deus. É bom lembrar que o conhecido capítulo do amor, famoso até fora dos círculos cristãos, foi escrito dentro do contexto dos dons espirituais, isto significa que cada cristão, ao exercitar seus dons, somente poderá fazê-lo de modo legitimo se tiver amor, pois se não tiver amor, nada será – 1Cor 13,2c – Em nossos atos religiosos não terão significado algum, pois serão “....como bronze que soa ou como címbalo que retine” – 1Cor 13,1c. enquanto exercitamos os nossos dons, devemos também demonstrar nosso amor aos pecadores incrédulos, para que ele sejam convencidos e conseqüentemente salvos – “Mas, se todos profetizarem, e algum incrédulo ou indouto entrar, por todos é convencido, por todos é julgado; os segredos do seu coração se tornam manifestos; e assim, prostrando-se sobre o seu rosto, adorará a Deus, declarando que Deus está verdadeiramente entre vós.” (1Cor 14,24-25).
- A prática do amor fraternal.
Em Ef 4,2.15.-16 – “Com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor, antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, do qual o corpo inteiro bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, efetua o seu crescimento para edificação de si mesmo em amor.” – o apóstolo Paulo mostra que a verdade a respeito dos dons espirituais, bem como toda a verdade cristã, deves ser praticada em amor. Porque é em amor que a Igreja cresce e se edifica – “do qual o corpo inteiro bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, efetua o seu crescimento para edificação de si mesmo em amor.” (Ef 4,16); “e consideremo-nos uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras,” (Hb 10,24). O Dr. John Stott, em seu comentário deste texto, afirma que: “A verdade se torna ríspida se não for equilibrada pelo amor; o amor torna-se frouxidão se não for fortalecida pela verdade. O Apóstolo nos exorta a mantermos os dois juntos, o que não deve ser difícil para crentes cheios do Espírito Santo, visto que Ele mesmo é o Espírito da verdade, e o seu primeiro fruto é o amor”.
Em 1Pd 4,8 – “Tendo antes de tudo ardente amor uns para com os outros, porque o amor cobre uma multidão de pecados.” – ao introduzir o assunto dos dons espirituais, Pedro faz questão de colocar junto, ou melhor “...acima de tudo”, o amor, que é um ingrediente indispensável para sua prática, como já havia sido ensinado por Paulo aos Coríntios – 1Cor 13.
Além disso, Pedro neste texto:
a) pressupõe que este amor já existe entre os cristãos – “...e a esperança não desaponta, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.” (Rm 5,5);
b) ordena que este amor seja intenso, perseverante – “Já que tendes purificado as vossas almas na obediência à verdade, que leva ao amor fraternal não fingido, de coração amai-vos ardentemente uns aos outros.” (1Pd 1,22) e não fugaz – “Que te farei, ó Efraim? que te farei, ó Judá? porque o vosso amor é como a nuvem da manhã, e como o orvalho que cedo passa.” (Os 6,4).
c) Declara que este amor cobre multidão de pecados – “...sabei que aquele que fizer converter um pecador do erro do seu caminho salvará da morte uma alma, e cobrirá uma multidão de pecados.” (Tg 5,20); “....mas o amor cobre todas as transgressões.” (Pr 10,132b).
Ao finalizar este ponto, creio que Deus esteja dizendo a mim e a você, crente em Jesus, que jamais devemos nos atrever a exercitar nossos dons espirituais sem levar em conta o amor como ingrediente indispensável. Cada vez que a igreja desobedece a este mandamento do Senhor - “Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei a vós, que também vós vos ameis uns aos outros.” (Jo 13,34), ela atropela o processo natural estabelecido por Deus e precisa de ser corrigida – “Segui o amor; e procurai com zelo os dons espirituais, mas principalmente o de profetizar.” (1Cor 14,1).
III. A EXPRESSAO DA SOBERANIA DE DEUS.
O próprio tema deste capítulo – “Os dons do Espírito Santo” – já revela que os dons espirituais foram doados soberanamente por Deus e com finalidade por Ele determinada. Por isso, é correto afirmar que eles expressam a soberania de Deus, como veremos a seguir.
- Deus determina e distribui os dons.
Rm 12,3.6 – “Porque pela graça que me foi dada, digo a cada um dentre vós que não tenha de si mesmo mais alto conceito do que convém; mas que pense de si sobriamente, conforme a medida da fé que Deus, repartiu a cada um. De modo que, tendo diferentes dons segundo a graça que nos foi dada, se é profecia, seja ela segundo a medida da fé.” – Paulo ao escrever sobre os dons espirituais, começa fazendo menção de que ele mesmo era apóstolo por uma designação soberana de Deus “.... pela graça que foi me dada...” (Rm 12,3) e enfatiza essa verdade mais vezes nesta carta – “Mas em parte vos escrevo mais ousadamente, como para vos trazer outra vez isto à memória, por causa da graça que por Deus me foi dada,” (Rm 15,5) – e nas outras cartas de sua autoria, você pode conferir isto, já na introdução das mesmas.
O texto acima afirma que os dons espirituais devem ser praticados por cristãos que exercitam suas mentes “conforme a medida da fé que Deus, [repartiu a cada um].” (Rm 12,3). Isto parece indicar que Deus distribuiu dons e porção de fé suficiente para o seu exercício – “porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade.” (Fl 2,13). Afinal temos todos “...diferentes dons segundo a graça que nos foi dada...” (Rm12,6)
- Deus coordena e estabelece as funções na Igreja. (1 Cor 12,11.18.24.28)
O apóstolo Paulo da claras indicações de que a distribuição dessas capacitações espirituais (os dons) são responsabilidade exclusiva de Deus, como também os princípios que as governam.
a) O mesmo Espírito distribui como lhe apraz, isto é, conforme sua vontade - “Mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, distribuindo particularmente a cada um como quer.” v 11.
b) Deus foi quem estabeleceu nosso lugar de serviço na Igreja como lhe aprouve, isto é, como Ele mesmo quis – “Mas agora Deus colocou os membros no corpo, cada um deles como quis.” v 18.
c) Todo arranjo existente no corpo de Cristo no que se refere ao posicionamento espiritual de seus membros, é perfeito, porque foi Deus quem coordenou as várias funções na igreja – “Ao passo que os decorosos não têm necessidade disso. Mas Deus assim formou o corpo, dando muito mais honra ao que tinha falta dela. E a uns pôs Deus na igreja, primeiramente apóstolos, em segundo lugar profetas, em terceiro mestres, depois operadores de milagres, depois dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas.” vv 24 e 28.
- Deus Filho e quem edifica a Igreja. (Ef. 4,7-12).
Enquanto o apostolo Paulo discorre aqui sobre os dons espirituais, continua destacando a soberania de Deus, quando afirma que a graça foi concedida a cada um de nós crentes, segundo a proporção do dom. foi Cristo que concedeu dons aos homens, pois Ele mesmo e não outro qualquer foi concedeu à Igreja todos os dons necessários à edificação de seus membros e desempenho do seu serviço.
- Deus apropria o dom de acordo com seus propósitos. (1Pd 4,10)
Encontramos nos ensinos de Pedro indicações claras de que os dons espirituais acontecem somente debaixo da soberania de Deus. Ele ordena que devemos servir uns aos outros de conformidade com o dom que recebemos e que devemos fazer isto como bons despenseiros de Deus isto significa que ele pressupõe que os nossos dons espirituais, bem como as chaves da despensa de Deus nos foram concedidos pela sua vontade soberana. Com base no que foi dito aqui a respeito da soberania de Deus sobre os dons espirituais, fica claro que nenhum crente pode eleger este ou aquele dom para si e administrá-lo a seu modo, pois tanto a concessão como o jeito de se exercitar o dom são prerrogativas de Deus, ainda que tenhamos o mandamento de procurar com zelo os melhores dons – “Mas procurai com zelo os maiores dons. Ademais, eu vos mostrarei um caminho sobremodo excelente.” (1Cor 12,31).
CONCLUINDO
Gostaria de concluir este capitulo lembrando a cada um de nós que enquanto exercitamos os dons espirituais devemos levar em conta estes três princípios – da independência dos membros, do amor fraternal e da soberania de Deus – bem como os propósitos para os quais eles nos foram doados a saber: o serviço a Deus visando sua gloria (“os segredos do seu coração se tornam manifestos; e assim, prostrando-se sobre o seu rosto, adorará a Deus, declarando que Deus está verdadeiramente entre vós. (1Cor 14,25)) e aos homens visando a edificação dos irmãos e a salvação de pecadores (Mas, se todos profetizarem, e algum incrédulo ou indouto entrar, por todos é convencido, por todos é julgado. (1Cor 14,24)).
Qualquer uso dos dons do Espírito Santo sem levar em conta os princípios e propósitos é contrário à natureza deles. Por isso somos exortados aqui a fazermos as coisas do jeito de Deus, e assim tudo quanto fizermos será bem sucedido – “Pois será como a árvore plantada junto às correntes de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria, e cuja folha não cai; e tudo quanto fizer prosperará.” (Sl 1,3).
MARCO ANTONIO LANA (TEOLOGO)