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sábado, 27 de abril de 2019

A ESPOSA DE JÓ – UMA INJUSTIÇADA?


 
No imaginário judaico/cristão a mulher de Jó sempre foi considerada como o protótipo da mulher insana, afetada, sem juízo, e antagônica a seu marido. 


O livro de Jó, considerado o mais antigo livro das escrituras, inicia falando da prosperidade de Jó e de seu relacionamento com Deus que, conversando com Satanás, cobre Jó de elogios. O Acusador não perde a oportunidade de alfinetar o Altíssimo e põe em dúvida se tal fidelidade não é mais fruto de uma barganha do que de intimidade verdadeira. Ao ser provocado, Deus permite que Satanás tenha poder para atormentar a vida de Jó e assim provar qual a origem da sua fidelidade. Começa aí o seu infortúnio.


Neste grande drama há alguns personagens que vão buscar durante o decorrer da história encontrar respostas para o sofrimento de Jó e, por extensão, debater sobre a origem do sofrimento humano em um mundo governado por um Deus justo e bom. Zofar, Bildade e Elifaz se revezam em discursos que ora insinua, ora afirma que deve existir algum pecado em Jó, nem que seja oculto, e que seu sofrimento é justo, pois de Deus não se pode esperar outra coisa. Tais discursos são rebatidos por Jó que reafirma reiteradamente sua inocência e continua a se perguntar sobre o porquê de seu sofrimento. O jovem Eliú faz um apanhado geral enfatizando a soberania e sabedoria de Deus condenando todos os demais, tanto os amigos, quanto o próprio Jó. Por último o próprio Soberano do universo se revela a Jó e não lhe dá resposta alguma, a não ser reafirmar sua soberania o que, paradoxalmente, é resposta mais que suficiente para Jó que ao final responde “antes te conhecia só por ouvir falar, mas agora meus olhos te veem”.


A mulher de Jó, esta mulher sem nome, como tantas outras mulheres da Bíblia – lembremos que até mesmo aquela que ungiu Jesus com alabastro e da qual Cristo disse que jamais seria esquecida por causa do seu gesto, também permanece anônima – era apenas uma coadjuvante.


De todos os personagens da narrativa, ela é quem tem a menor fala e menor espaço para se expressar. Não foi dado a ela o mesmo destaque dado aos discursos eloquentes e vazios de Zofar, Bildade, Elifaz, nem teve a honra de ser a última a discursar, como o jovem Eliú. Sua participação foi um átimo, um único versículo que serviu para encerrá-la para sempre no panteão das mulheres vilãs da Bíblia com a companhia nada honrosa de Jezabel, Safira, a mulher de Ló – mais uma anônima – e outras menos cotadas.


Como eu não estou aqui para ser mais um a jogar pedras, gostaria de mais uma vez, como sempre fazemos aqui no nosso espaço, convidar você a me acompanhar em mais uma viagem para além da tradição e dar a esta mulher o benefício da dúvida, nos permitindo entrever algo de belo em seu gesto e nos surpreender com uma inesperada lição da graça de Deus, mesmo quando Ele permite algo que para muitos de nós soa contraditório.


A Bíblia nos descreve Jó como sendo o homem mais rico do Oriente (Jó 1,3). Isto é muito forte. Podemos imaginar a sua esposa sendo uma fina dama rodeada de conforto. Sua casa deveria ser um “palacete”. Os móveis e os adornos eram de alto estilo, talvez todos importados e comprados com muito bom gosto.


Os empregados vestiam-se com trajes especiais e havia entre eles muito respeito pelos patrões. A comida fina e requintada era posta na grande mesa na sala do banquete, onde sempre havia convidados, e a família se reunia para conversar e se alegrar.


Os dez filhos do casal eram amigos e se visitavam com frequência. Formavam uma família próspera e muito feliz. Isto até mesmo despertava a inveja nos corações de alguns, que talvez não lhes conhecessem a simplicidade interior. Pois, apesar de toda essa riqueza e luxo, Jó e sua família tinham um coração simples e modesto, reconhecendo a bondade de Deus em todas as coisas que vieram a possuir.


Num dia fatídico, entretanto, a tragédia veio bater à porta daquela família feliz. No mesmo dia, chegaram, seguidamente, as notícias para o casal: todo o gado tinha sido levado pelos ladrões (os sabeus) e os empregados de Jó estavam mortos (1,14-15). Enquanto esta notícia era dada, outro servo chegou dizendo que havia caído fogo do céu e queimado todas as suas ovelhas e os seus pastores, no campo (v.16). Outro servo falou que os camelos tinham sido levados pelos caldeus e os servos foram todos mortos ao fio da espada (v. 17). E, finalmente a notícia mais doída para o coração do casal: seus filhos estavam mortos sob os escombros da casa que desabara sobre eles, provocada por um vendaval do deserto (v. 18-19).


Com toda a dor das perdas, Jó continuou confiando em Deus e adorando-o. Sua esposa assistia a tudo isto e sentia-se esmagada pela dor. Geralmente as mulheres são mais sensíveis do que os homens e, na verdade, ela estava sofrendo demais.


Sabemos que as provações não moldam o caráter, mas apenas o revelam… O caráter íntegro e confiante de Jó permaneceu inalterado. Ele reconheceu que tanto receber o bem (as bênçãos) quanto sofrer o mal, ou seja, as experiências negativas, isto fazia parte da vivência humana, e que Deus estava no controle de todas as coisas. Entretanto, para sua esposa as coisas eram diferentes. Ela não conseguia enxergar de maneira clara o que estava acontecendo, e desesperou-se.


Com as perdas dos empregados, do gado, dos camelos e, principalmente dos filhos, o luxo da casa começou a perder o brilho. A falta da presença dos dez filhos trouxe à esposa de Jó uma sensação de vazio e de grande tristeza. Ela procurava manter a calma, mas seu coração amargurado estava cheio de revolta contra Deus. Como ela poderia aceitar tantas perdas? Como poderia se sentir a mesma sem os bens que sempre tivera? Como poderia viver num padrão de vida mais baixo, sob os olhares de compaixão das amigas e o olhar satisfeito dos invejosos?


A provação vem para todos e, parece que a esposa de Jó não estava preparada para o sofrimento. O seu coração ia se enchendo de sentimentos negativos de auto - comiseração e revolta. E as coisas pioraram ainda mais.  


A última prova alcançou o corpo de Jó. Uma enfermidade repugnante tornava sua companhia indesejável. Jó ficou cheio de tumores malignos do alto da cabeça à planta dos pés, sua pele estava cheia de feridas e seu hálito era insuportável (19,17). Era uma situação terrível para sua esposa. Ela não podia mais contemplar o sofrimento do esposo. Ele apresentava insônia, inapetência, magreza e incômodo por coceiras em todo o corpo. 
 
 
A mulher de Jó não é alguém que aparece do nada na história, não é uma transeunte que passa aleatoriamente e resolve dar sua opinião, não é sequer como os amigos de Jó que se compadeceram dele e lhe fizeram companhia, mas que depois disso iriam para suas casas e suas vidas. Não, ela era a pessoa mais próxima de Jó. E se Jó sofreu com os infortúnios que caíram sobre ele, ela também sofreu junto e amargou todas as perdas. Diferente dos amigos de Jó, ela estava padecendo conjuntamente do mesmo mal que se abateu sobre seu marido. Ela perdera seus filhos, sua casa, seus bens, sua dignidade e, naquele momento, via o homem a quem havia devotado uma vida ali, sobre um monturo, cheio de chagas malignas que iam da cabeça aos pés, coçando-se com um caco para aliviar sua agonia.


“Amaldiçoa seu Deus e morre”. Esta foi à frase que fez com que ela caísse em desgraça aos nossos olhos. Uma única frase, perdida lá no versículo nove do capítulo dois do livro, mas que serviu de argumento para o seu linchamento moral. Linchamento moral é algo que fazemos com enorme facilidade, mas que tal irmos para além da frase? Que tal buscarmos as motivações que a levaram a esta atitude extrema? Que tal averiguarmos se esta mulher é tão indigna e condenável para Deus quanto os nossos julgamentos determinam?


É certo que nas provações da vida, não podemos olhar para nós mesmos, mas precisamos olhar para Deus. Se cairmos nessa tentação de olhar para o nosso estado na provação, então o inimigo terá alcançado êxito e nos fará desistir de Deus, da fé e da vitória. A fé nos faz ver o invisível, crer no incrível e sonhar com o milagre impossível aos olhos materiais…
 
 
Jó ficou muito bravo com a esposa, quando ela lhe falou para desistir de lutar, de viver, de sonhar. Ele a chamou de “doida”. Realmente é loucura desistir de lutar, de viver, de sonhar… A chama que aquece o nosso coração é a fé. É a certeza das coisas que se esperam. É a prova das coisas que não se veem. Sem fé é impossível agradar a Deus (Hb 11,6). Sem fé é impossível viver feliz e ter esperança… Na escuridão das provas é preciso olhar para Deus, para o alto, e confiar, e descansar, e esperar somente nele, pois dele vem a nossa salvação.


É bem possível que a esposa de Jó tenha atentado para a exortação de seu marido. É bem possível que ela tenha parado um pouco e refletido na insensatez de suas palavras dirigidas ao seu amado esposo… É bem possível que ela tivesse se arrependido do que falara e tenha se recolhido à meditação e reflexão sobre os acontecimentos, aguardando o desfecho…
 
Nada mais injusto! Pensava ela. 
 

Mais do que ninguém ela sabia da injustiça daquela punição. Era ela quem presenciava quando Jó chamava seus dez filhos para os santificarem, mesmo já sendo adultos. Era ela quem acordava à noite, tocava na cama procurando seu marido e não o encontrava, ia achá-lo na madrugada fazendo sacrifícios a Deus por amor à vida de seus filhos, que foram mortos todos de uma vez sem razão aparente. Era ela quem presenciava dia a dia a integridade e retidão de Jó em todas as coisas. Nos negócios, na família, entre os mais necessitados e na vida conjugal.
 

A mulher de Jó foi o único personagem que lhe reconheceu a inocência. E exatamente por não ver em seu marido falha alguma a ponto de receber tão grande punição é que ela expressa sua revolta em um desabafo desesperado, sim desabafo de quem vê sua vida ruir da noite para o dia, de quem tinha uma vida em paz e temor a Deus e que se vê saqueada, sem seus filhos, sem ter como se sustentar e vendo o homem a quem amava em agonia de morte. 
 

“Assim como fala uma louca, falas tu” é a repreensão que ela ouve de Jó e, após ouvir estas palavras, cala-se, não contra-argumenta, nem rebate, apenas cala-se, como a reconhecer seu erro, ao contrário dos amigos que em nenhum momento deram descanso e só foram reconhecer o mal que fizeram depois que o próprio Deus ordenou. 
 

Entendendo a passagem 
 

Em Jó 2,9 está escrito:

 
“E a mulher dele disse: Então sua mulher lhe disse: Ainda reténs a tua integridade? Blasfema de Deus, e morre.”. 

 
Neste versículo, a mulher de Jó estava incentivando Jó a amaldiçoar a Deus; pelo menos, é o que dá para concluir num primeiro momento. No entanto, algo que sempre me intrigou, foi o fato dela (a mulher de Jó) ter permanecido viva e depois ter sido grandemente abençoada no final de tudo, juntamente com o seu marido Jó. A pergunta que eu sempre me fazia era: “Como a mulher de Jó podia ter sido preservada viva e depois grandemente abençoada, se ele incentivou Jó a amaldiçoar a Deus?”. Isto me parecia uma grande contradição. Devido esta dúvida, eu fui buscar esta passagem no original, em hebraico, e descobri o seguinte: A mulher de Jó NÃO disse “Amaldiçoa a Deus e morre”, mas ela disse “Abençoa a Deus e morre”. No idioma original (no hebraico) a mulher de Jó disse “Barech Elohim”. Mas, o que significa “Barech Elohim”?
 

Barech significa “abençoar, bendizer, louvar”, segundo o Dicionário Hebraico – Português e Aramaico-Português, da Editora Sinodal, Co-Editora: Editora Vozes Ltda, 8ª edição, 1997, página 33. “Elohim” é um dos nomes de Deus na Bíblia. Ao pé da letra, este nome significa deuses, pois, está no plural. O sufixo “im”, em hebraico, forma o plural masculino. No entanto, quando se refere ao único e verdadeiro Deus, este nome passa a ter o sentido de “Deus dos deuses”, pois, o Senhor é Deus sobre todos os outros supostos deuses; Ele é o Senhor dos Senhores. 
 

Então, a mulher de Jó disse que ele deveria bendizer a Deus e morrer; ela não disse para Jó que ele deveria amaldiçoar a Deus, pois, “Barech” não significa “amaldiçoar”, mas “abençoar, bendizer, louvar”. Quando eu vi esta passagem no hebraico, eu consegui entender o motivo pelo qual ela foi preservada viva e porque Deus permitiu que ela fosse grandemente abençoada, juntamente com Jó, depois da grande tribulação em que passaram juntos: ela não havia dito, em nenhum momento, que Jó deveria amaldiçoar a Deus; pelo contrário, ela havia dito que ele (Jó) deveria bendizer a Deus. Devido este motivo, Deus a preservou e a abençoou grandemente. No entanto, surgiu outra dúvida: “Se ela disse para Jó bendizer a Deus, então por que Jó a repreendeu e disse que ela havia falado como uma doida, conforme podemos ver em Jó 2,10? Analisando o contexto, eu percebi que Jó repreendeu a esposa dele, pelo fato dela ter feito uma proposta derrotista e desanimadora a ele; é como se ela tivesse dito o seguinte a Jó: “ Desista, não há mais o que fazer; louve a Deus por tudo que já tivemos de bom no passado e aceite que estamos derrotados”. Jó, ao ouvir isso, repreendeu a mulher dele, porque ele sabia que o Redentor dele (Deus) era poderoso o suficiente para reverter toda aquela situação degradante. Este foi o motivo pelo qual Jó disse a mulher dele, que ela falara como uma louca: devido a proposta desanimadora que ela havia feito a ele. 
 

Conclusão 
 

A mulher de Jó representa este grito angustiado que eu e você temos no peito todas as vezes que sofremos as injustas peças pregadas pela vida. É a voz que clama por um mundo em que haja algum tipo de lógica, em que os maus sejam efetivamente punidos e os bons recebam de Deus benevolência. Ela é a porta-voz que nos mostra que nem sempre as coisas fazem sentido, que injustiças acontecem com pessoas boas e a nossa teologia nem sempre consegue responder. É a testemunha de que todos nós, em algum momento da vida, também nos revoltamos contra Deus.
 

Enfim, ela é muito parecida conosco, talvez por isso nós a repudiamos. Pois somos tão envolvidos e contaminados por idealizações que não reconhecemos quando vemos nossa própria face no espelho. 
 

Mas, apesar de todos os nossos preconceitos e condenações. Apesar de todo o estigma que ela sofreu posteriormente. Deus, que é quem verdadeiramente sonda e conhece os corações e as motivações, honrou-a ainda em vida. Sim, pois Deus devolveu-lhe a saúde do marido, restituiu-lhe os bens e, suprema honra para as mulheres da antiguidade, deu-lhe mais dez filhos. 
 

E, para confirmar que Ele entende nossas angústias e dúvidas mais do que nós mesmos gostamos de reconhecer e que Sua graça alcança até mesmo àqueles que para nós são execráveis, Ele, o Único a quem cabe estabelecer justiça, não lançou nenhuma palavra de crítica ou de condenação a essa louca mulher que teve a coragem de expressar livremente sua dor.  
 

Observem, irmãos amados, que depois de estudar a fundo esta passagem, toda aparente contradição, desapareceu. A Bíblia é perfeita; ela NUNCA falha. Às vezes, a tradução em nosso idioma deixa um pouco a desejar, mas a Bíblia em si, nunca falha. 
 

Para refletir 
 

Como você agiria estando no lugar da esposa de Jó?  
 

Você já passou por alguma prova semelhante às desta família?  
 

Você já “chutou o balde” (entrou em desespero) alguma vez na vida?  Como agir para que isto não ocorra nos momentos de grande pressão externa? 
 

Em sua opinião, qual a maior bênção que a esposa de Jó recebeu depois que tudo passou?  
 

Qual a atitude que devemos ter diante das provações da vida? 
 

Leia o que Tiago fala das provações (Tg 1.2-4) e compartilhe com alguém, que esteja passando por lutas, sobre esse texto. 
 

Por Marco Antônio Lana (Teólogo Bíblico)
 

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